Raiz dos problemas nas celebrações: falta de formação litúrgica

“Na raiz de todos os problemas que encontramos em nossas celebrações litúrgicas, e também desta falta de espiritualidade, está a insuficiência da formação litúrgica”, afirma o padre Gregório Lutz CSSp. Doutor em liturgia e autor de vários livros sobre o tema, padre Gregório Lutz concedeu esta entrevista a ZENIT.

Entrevista com o padre Gregório Lutz
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A ‘Sacrosanctum Concilium’, no número 7, diz; “com razão se considera a Liturgia como o exercício da função sacerdotal de Cristo”. Poderia nos explicar, por favor?

Pe. Gregório Lutz: As palavras citadas do documento do Concílio Vaticano II  sobre a Liturgia  são as primeiras da frase talvez mais importante de todo este documento. Muitos consideram esta frase como  uma definição de Liturgia. Parece-me que junto com estas palavras devemos logo considerar pelo menos  ainda as últimas desta frase que nos dizem quem é este Cristo que na Liturgia exerce o seu sacerdócio: É o Cristo todo, cabeça e membros. Para entendermos bem tal afirmação do Concílio Vaticano II, é bom lembrar o pano de fundo, diante do qual ela foi feita: Era a compreensão da Liturgia como ritual externo, como conjunto de cerimônias, como rubricas e prescrições que regulamentam as celebrações. Além disso, como celebrantes da Liturgia  consideravam-se somente os ordenados, sobretudo os padres e os bispos, ao passo que os leigos assistiam às celebrações, mas não tinham parte ativa nelas. Pelo movimento litúrgico que se considera ter começado em 1909, esta compreensão da liturgia se corrigiu em muitas cabeças, mas sabemos que ela existe ainda hoje.

Já o Papa Pio XII tinha declarado, no ano de 1947, em sua encíclica ‘Mediator Dei’ sobre a Liturgia: “Estão … muito longe da verdadeira e autêntica noção da sagrada Liturgia aqueles que a julgam como sendo apenas a parte externa e sensível do culto divino, fazendo-a consistir no aparato decorativo das cerimônias; e não erram menos os que a têm como simples conjunto de leis e regras com que a hierarquia eclesiástica manda ordenar a execução dos ritos sagrados” (nº 23 da edição  ‘Documentos Pontifícios’ da Editora Vozes, de 1963). De modo positivo, o Papa Pio XII deu, no mesmo documento, a seguinte definição de Liturgia: “A Sagrada Liturgia é … o culto público que o nosso Redentor rende ao Pai como Cabeça da Igreja e que a sociedade dos fiéis rende ao seu fundador e, por ele, ao Pai eterno; ou, em breves palavras, é o culto integral do Corpo Místico de Jesus Cristo, isto é, da Cabeça  e dos membros” (nº 17).

Esta encíclica aprovou amplamente aquilo pelo qual os protagonistas do movimento litúrgico tinham lutado e que na consciência e na prática celebrativa de muitos católicos e comunidades já tinha sido assumido: Liturgia não é só o ritual que o clero realiza, mas é Jesus Cristo, nosso Sumo Sacerdote no meio do seu povo sacerdotal e com os membros do seu corpo místico celebrando a obra divina de salvação da humanidade. O Concílio Vaticano II, como suprema instância da Igreja, ratificou esta visão da Liturgia e colocou as balizas para a reforma litúrgica que devia facilitar que todos que no batismo foram ungidos sacerdotes, pudessem celebrar a Liturgia, participando dela ativa, externa e interna, consciente, plena e frutuosamente, e assim exercer o seu direito e dever como povo sacerdotal (cf. SC 14), em lugar de apenas assistir da nave da igreja ao que o clero faz no altar. Conforme o Concílio, os fiéis devem até aprender “a oferecer-se a si próprios, oferecendo a hóstia imaculada, não só pela mãos do sacerdote” (SC 48).

“Qualquer celebração litúrgica é, por ser obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja, ação sagrada por excelência, cuja eficácia, com o mesmo  título e no mesmo grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja” (SC 7). Como o senhor vê o protagonismo advogado por muitos sacerdotes e também por leigos nas celebrações litúrgicas?

Pe. Gregório Lutz:
Pelo Concílio Vaticano II a Igreja católica queria retornar às suas fontes, não por uma tendência arqueologística, mas para voltar a ser a Igreja autêntica de Jesus Cristo. Já que a Igreja é formada por pessoas humanas que nem em tudo são perfeitas, não todas as evoluções ao longo dos séculos eram positivas, para melhorar a Igreja. O mesmo aconteceu com a Liturgia. A meta da reforma litúrgica era voltar à liturgia romana clássica, como ela foi criada e existia nos séculos 5 a 7. A Liturgia desta época era tipicamente romana, quer dizer, simples e sóbria. Nela se expressava o mistério celebrado em palavras e gestos concisos, sem enfeites supérfluos que ofuscam o essencial das celebrações. Os livros litúrgicos que temos daquela época nos mostram isso claramente.

Os responsáveis pela elaboração dos novos livros litúrgicos, depois do Concílio Vaticano II, pensaram também que os  ritos e as orações de tal liturgia pós-conciliar, elaborada em Roma para a Igreja inteira, devesse e pudesse facilmente ser adaptada nas diversas partes e culturas do mundo. Isso, no entanto, quase não aconteceu, nem no Brasil. Por isso, sobretudo a celebração da missa, para muitos, fiéis e padres,  foi percebida como seca e fria, de algum modo como esqueleto sem carne. Então, para se conseguir uma liturgia “mais quente e com carne”, surgiu uma rica criatividade, mas com muita frequência sem critérios válidos para uma liturgia autêntica. Tal criatividade, que antes deterioriza as celebrações em lugar de facilitar o mergulho das assembleias no mistério de Cristo, se devia e se deve sobretudo à falta de formação litúrgica do clero e dos fiéis. Ainda pior são os resultados de tais iniciativas quando os seus protagonistas pensam que são peritos competentes para criar a “sua” liturgia e não lembram que são apenas administradores  da  liturgia da Igreja, que nos vem de Cristo e dos apóstolos,  mas da qual não somos os donos. Estes amadores não têm consciência de que são ministros, isto é, servidores na Igreja e na assembleia litúrgica, para que o povo de Deus possa, com sua ajuda, celebrando fazer sua a salvação que Cristo operou, cuja memória fazemos na Liturgia.   

O senhor considera que há um certo descuido e até mesmo falta de espiritualidade séria que leva a abusos e banalização da Liturgia hoje no Brasil?

Pe. Gregório Lutz: Assim como, infelizmente, muitos dos nossos irmãos padres e leigos não têm consciência da função de Jesus Cristo como “celebrante principal” da Liturgia, muitos também não  sabem que nas ações litúrgicas tudo acontece “pela força do Espírito Santo” (SC 6). Espiritualidade diz de fato respeito à presença e ação do Espírito Santo em nosso ser e agir como membros da  Igreja e, particularmente, na Liturgia. É verdade que o Espírito Santo sopra onde quer e, certamente no cam
po da Liturgia ele estava presente em muitas das iniciativas próprias e características da Igreja no Brasil. Mas, sobretudo quando uma pessoa acha que só ela possui o Espirito Santo ou, pior ainda, quando ela se acha dono da Liturgia, deve-se duvidar que o espírito, no qual age, seja o de Deus. Em verdadeira espiritualidade trabalha quem entende os ministérios ou qualquer serviço dentro da Liturgia ou ligado a ela, no espírito de Jesus, que é o de servir gratuitamente, para que os outros tenham vida; neste espírito a pessoa se esforçará na medida do possível e para uma Liturgia  autêntica. Acho que devemos reconhecer que também no Brasil nem todos os agentes de pastoral litúrgica têm esta espiritualidade e que esta falta é causa de abusos e banalizações que de fato também existem entre nós. Neste contexto, eu gostaria de lembrar mais uma vez que na raiz de todos os problemas que encontramos em nossas celebrações litúrgicas, e também desta falta de espiritualidade, está a insuficiência da formação litúrgica.

Como cuidar do esmero e da beleza da Liturgia?


Pe. Gregório Lutz:
Tenho a impressão que particularmente em comunidades de população pobre é difícil, por um motivo bem concreto, que se percebe sobretudo na construção e arrumação dos espaços litúrgicos: A comunidade de pobres já fica contente se tem um espaço para suas reuniões celebrativas, se este ambiente tem um aperfeiçoamento como o têm suas próprias casas. Quando há as paredes com  janelas e portas e um telhado, está tudo bem, já porque não há condições para conseguir mais, como reboco e pintura. O mesmo estou observando na construção de igrejas e capelas e suas instalações. Todavia, quando se consegue aperfeiçoar a construção e a torná-la fora e dento mais bonita, isso se sente como algo agradável para a comunidade e também conveniente para a casa Deus.

Ora, quando a comunidade tem a sensibilidade e possibilidade de tornar o seu salão, sua capela ou igreja mais bonita, existe o perigo de trazer enfeites que não ajudam a sentir melhor o mistério que em nossas igrejas se celebra. Antes, às vezes são elementos que desviam a atenção do essencial que acontece na assembleia litúrgica, ou até são de mau gosto. Sempre a comunidade deve poder reconhecer o seu espaço celebrativo como seu. A solução também aqui me parece ser uma formação adequada. Em primeiro lugar seria necessário tentar elevar o nível humano e cultural da comunidade, depois ajudá-la a aprofundar sua fé em geral e particularmente com respeito à Liturgia; então será mais fácil despertar uma sensibilidade melhor também para o esmero e a beleza da Liturgia.

A ‘Sacrosanctum Concilium’, ao mesmo tempo em que enfatiza a primazia do canto gregoriano “como canto próprio da liturgia romana” (nº 116), mas também “aprova e aceita no culto divino todas as formas autênticas de arte, desde que dotadas das qualidades requeridas” (nº 112), pede que “se guarde e se desenvolva com diligência o patrimônio da música sacra” (nº 114). O senhor considera que se vê em nossas celebrações litúrgicas o cuidado e qualidade artística que se deveria ter com a música sacra?

Pe. Gregório Lutz: Eu pessoalmente acho uma pena que nas “minhas comunidades” (extremamente carentes, de periferia) não podemos cantar o canto gregoriano, e me alegro que por exemplo no mosteiro de São Bento no centro de São Paulo há todo domingo a missa principal com canto gregoriano, e  uma grande assembléia de pessoas da cidade participa desta missa. Mas onde não se sabe latim, tal canto não ficaria louvor vazio dos lábios, que Deus detesta? O mesmo vale, em ambientes semelhantes de população carente, para a polifonia clássica. Sei que às vezes pode ser participação de alguma maneira ativa também o mero ouvir de uma melodia que ajuda a entrar no mistério de Cristo. No entanto, “o canto sacro, baseado em palavras, faz parte necessária e integrante  da liturgia solene” e a música sacra exerce uma “função ministerial … no culto do Senhor” (SC 112) .

Outra questão se levanta a respeito do cuidado e da qualidade artística do que se canta geralmente  em nossas assembleias litúrgicas no Brasil. Penso que devemos ter cuidado não somente com a qualidade artística do nosso canto, mas também com sua função litúrgica. A este respeito não há nenhum modelo melhor do que o próprio canto gregoriano, enquanto sua letra é totalmente integrada na liturgia e sempre bíblica ou pelo menos de inspiração bíblica. Sendo de uma assembleia, o canto não deve ser individualista, nem totalmente subjetivista ou até sentimental. Evidentemente não deve faltar uma boa qualidade artística na letra e na melodia. Que sob todos estes aspectos muitas vezes o canto em nossas celebrações deixa a desejar, não é segredo. No entanto, para superar estas deficiências, em geral não será uma solução voltar ao canto gregoriano ou investir só na polifonia clássica. Ambas estas formas de canto não precisam ser banidas totalmente das nossas comunidades simples, menos ainda das igrejas em lugares de classe média ou alta. Mas, em todos estes casos, é mister sobretudo a formação de todos, especialmente de cantores e instrumentistas, para que o canto e a música, que podem tanto ajudar a  mergulhar no mistério que  celebramos, possam cumprir sua missão que o Concílio Vaticano II  lhes atribui.

Poderia nos falar, por favor, dos trabalhos de tradução do novo Missal?

Pe. Gregório Lutz: No ano de 2002 foi publicado em Roma uma nova edição do Missal. Novo é nele, em comparação à edição anterior, a introdução de algumas memórias de santos recentemente canonizados, e orações sobre o povo no fim de todas as missas dos dias de semana da Quaresma. Este Missal, evidentemente editado em latim, deve ser traduzido para as línguas modernas dos diferentes povos do mundo, também para o Brasil, que não adotará a tradução feita para os outros países de língua portuguesa. Já que a maior parte dos textos desta edição é em latim idêntica aos da  edição anterior, estes precisam apenas de uma revisão. Para tradução e revisão, a Congregação para o Culto Divino, em Roma, publicou uma instrução especial.

Enquanto consta,  em nenhum país este trabalho de tradução e revisão foi terminado no prazo estabelecido de cinco anos a partir de 2002. No Brasil, a comissão que foi encarregada deste serviço está terminando a sua tarefa até a páscoa
deste ano. Mas, o que nós, três padres e um leigo, fazemos aqui em São Paulo, deve ser visto e eventualmente corrigido ou melhorado por uma comissão de cinco bispos, e  depois ser  apresentado à assembleia geral do bispos do Brasil, para aprovação. Este trabalho dos bispos está ainda longe de ser terminado. Depois da aprovação pela assembleia geral dos bispos, o texto vai ser enviado a Roma, para  exame e confirmação pela Congregação para o Culto Divino. Só com esta confirmação o novo Missal poderá ser editado no Brasil. É impossível dizer quando isso será. Certamente vamos ter que esperar ainda alguns anos.

 

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